terça-feira, outubro 19, 2004

Lendas do Surf Suburbano II - O mundo paralelo de Melhoral.

Dando continuidade à mitologia do surf suburbano de Floripa, nesta edição do Fazendo Onda vou lembrar as aventuras de Melhoral. Esse, claro, não era o apelido correto do cara que, na verdade, era algo parecido, na linha farmacêutica também. Mas não vou dar a identidade dele por motivos de segurança. O que interessa é que o Melhoral não só era como ainda é outra figura lá do continente que, porém, ao contrário do Paulo Picareta da coluna anterior, pegava e ainda pega onda mesmo, é fera, apesar de já estar na meia idade. Na verdade, Melhoral até agora não sentiu o peso do tempo e continua o mesmo tanto física quanto mentalmente, sempre em boa forma, morando com a mãe, se alimentando bem, uma gatinha ali, outra aqui, etc. Até hoje, trabalhou muito pouco, estudou quase nada e, claro, é durango. Outro traço do Melhoral, talvez o mais conhecido, era – não sei se é ainda – a sua cleptomania. É, Melhô tinha essa doença, problema que, por muitas vezes, o deixou em apuros. Também, ninguém pode ser 100% saudável, né.
Ele não era, assim, um ladrão. Nada, Melhô só afanava coisas idiotas, sem valor, mas que deixavam os afanados putos. Era uma doença mesmo porque ele não conseguia se controlar e, de carona com algum amigo – nunca teve carro –, Melhô na saída sempre levava a fita do Bob Marley, uma toalha, a parafina do cara, essas coisas. Era uma pena porque esse problema o impedia de manter boas amizades.
Outras coisas interessantes sobre o Melhoral, eram o seu bom coração – não era de briga – e, especialmente, sua curiosidade atroz. Apesar do pouco estudo, Melhô se encarnava em geografia, zoologia, ciência em geral – mas bem na geral mesmo – e também pelas notícias da hora. Por exemplo, no seu quarto equipado com TV cabo (gato, obviamente), o único canal que rola atualmente, dizem que é a discovery da qual ele já viu todos os documentários mais de uma vez. E sempre soube de cor a velocidade da chita na savana africana, ou qual o rio mais longo do planeta. Apesar de não ter paciência para a escola, o cara era interessado e tinha uma boa conversa, o que o diferenciava dos demais idiotas que éramos na adolescência, quando só palhaçada saia da nossa boca.
Melhô desenvolveu seu surf ali mesmo, no pico do Atlético, na Praia do Cagão, quando o vento nordeste típico do verão empurrava umas marolas maiores que propulsionavam a rapaziada por alguns metros. E ele foi um dos pioneiros, o desbravador do pico, o descobridor do secret point. (Aliás, prá quem não sabe, o Pico do Atlético, ali, na frente da Pedra da Baleia, já viu muita gente boa dando suas primeiras remadas, empurrados pelo nordestão. O problema era a água, que tinha todas as cores menos azul, e os canos de esgoto que funcionavam como aqueles piers californianos, dando mais pressão. O fundo atolava um pouco mas era consistente).
Soube que Melhô chegou a participar de alguns campeonatos menores e se deu bem. Porém, competições não lhe atraiam e o surf, para ele, assim como o skate, era só diversão.
Nunca fui um grande amigo de Melhoral, até porque era ruim de confiar no bicho, mas tínhamos uma boa relação ali pela década de 80. Chegamos a ir à praia juntos algumas vezes na mesma “barca” e fomos colegas até na night – não sei se este termo ainda é usado. Numa dessas oportunidades que tive de desfrutar seu companheirismo na balada – essa expressão mais moderna –, fomos a bordo do meu Fiat 147 1981 a álcool em direção a um dos muitos bares que a Lagoa já teve, ali na Rendeiras. Lembro que, em determinada hora, ao som de “na madrugada, vitrola rolando um blues, tocando B. B. King sem parar...” travei contato com uma qualquer lá e – vejam que descolado – fomos pr’um canto ver a lua sobre a lagoa. Ou seja, deixei o Melhoral lá e nem quis saber.
Tarde da noite ou cedo pela manhã, após me despedir meigamente da companheira lunática – no sentido de que estávamos vendo a lua – fui procurar o carro prá ir embora. Andei quase a Rendeiras toda e nada. “Roubaram o 147”, pensei. Voltei prá casa de busão, apavorado, pensando no que diria em casa e nem me lembrei do Melhô. Só recordei do elemento quando, ao passar na frente da sua casa, deparei com a viatura lá estacionada. Meu Deus, vejam do que ele era capaz: o homem fez ligação direta... Ligação direta! E veio embora atravessando as várias pontes que o separavam do continente. Não deu bola. Quando o interroguei a respeito, ele me pediu que entendesse já que havia passado mal e, no desespero não teve dúvidas. De que jeito ele aprendeu a fazer ligação direta em automóveis – se praticando ou consultado a bibliografia especializada – eu nunca tive coragem de perguntar.
Recentemente, em uma das esquinas da cidade, trocava de idéias sobre a vida alheia com um amigo “daquelas épocas” – ambos casados, universidade concluída, barriga a despontar – a quem questionei sobre o Melhoral. Ele me informou que Melhô “está na mesma vida, não evolui. Não estudou, não trabalha, é só praia, skate, gatinhas, night, sempre em boa forma”. Eu fechei: “comé que pode né?”. Ficamos em silêncio, como que raciocinando, por alguns segundos até que ele me olhou e mandou: “rapaz feliz, né?”. É, Melhoral tem o segredo da felicidade.


1 Comentários:

Anonymous Anônimo said...

intiresno muito, obrigado

8:08 PM  

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