terça-feira, outubro 19, 2004

Quem vê cara não vê coração.

Numa coluna aí que cometi, quase chorando lembrei da minha adolescência, da facção pobre do surf da qual eu fazia parte, da nossa praia predileta – a Barra da Lagoa –, das coxinhas de galinha que nos nutriam e das pranchas medonhas com que nos estabacávamos nas ondas. É falando sobre estes tocos horríveis que pretendo enrolar a meia dúzia de três ou quatro que lerão esta edição da “Fazendo Onda”.
Era difícil prá nós, quase ainda crianças, sem mesada ou pai abastado, obter uma prancha de surf. Consegui a minha primeira através de uma longa seqüência de trocas de mercadorias, um circuito de escambo – como a gente aprendia na escola. O skate por uma bicicleta, a bicicleta por outra bicicleta, a bicicleta por duas bolas de basquete e uma camisa do avai autografada, as duas bolas mais a camisa por outra bicicleta – uma barra-forte – e, finalmente, esta bike pela prancha. Era uma Piu 6.4, lembro bem, que já devia ter uns 6 ou 7 anos de uso e era amarelona tanto pela pintura quanto pelo tempo. Prancha que até não estava tão ruim, não fosse pela “mordida de tubarão” que ela tinha: um rombo, muito mal consertado, que cobria uns 20 centímetros na lateral da rabeta. Quem tentou arrumar o estrago, colocou só resina de tal forma que o lance parecia uma casca de ferida gigante, mal lixada, que cortava o meu pé de vez em quando.
Preciso de um parágrafo só para descrever a quilha. Que obra de arte. Aqueles quase 50 centímetros de madeira afiadíssima, com uma curvatura que lembrava aquelas adagas árabes, deveriam estar em um museu. Coberta também por uma resina mal lixada e presa à prancha por camadas e camadas de tecido – porque vivia se soltando –, era uma arma branca. Provavelmente se tratava de um “estepe” pois perderam a original e mandaram o marceneiro fazer outra, uma substituta. Um perigo. Não sei se não seria mais fácil tentar descer ondas sobre uma mesa de churrasco. O peso provavelmente seria o mesmo, só que a mesa não teria a precisão e a estética daquela quilha.
Mas assim mesmo, torta e feiosa, eu adorava a minha prancha na mesma medida da dificuldade que tive para conquistá-la. Nos entendíamos muito bem. Ela era assumidamente uma prancha velha e destruída que tinha, no entanto, um espírito alegre e jovial. E nós nos gostávamos e não estávamos nem aí para os comentários.
Hoje, tem muita prancha circulando e neguinho troca todo o mês. Vende uma, já compra outra e assim vai-se mantendo atualizado. Todo mundo tem prancha boa, mas se tratam só de pranchas. A minha não era só uma prancha. Era uma entidade mitológica com poderes superiores, que representou um papel importantíssimo na minha adolescência, por mais detonada que fosse, a coitada. Por causa dela, eu podia dizer prá todo mundo que tinha uma prancha e era surfista, por mais prego que eu fosse e mesmo com toda a minha falta de talento prá coisa.
Fazendo uma comparação esdrúxula, é a mesma coisa que acontece com a música hoje em dia. É tão fácil conseguir – é só baixar – que não dá tempo nem prá gostar. Faz-se o download, se escuta umas duas vezes e se esquece. Eu lembro de economizar cada tostão prá comprar aquele vinil do Bob Marley ou do Police, por exemplo, e depois escutá-lo todos os dias por meses a fio a ponto de saber todas as letras de cor, mesmo não entendendo patavinas do que estava sendo cantado. De formas que cada vinil destes guardava a trilha sonora de um determinado período da vida. Cada um destes LPs marcou uma época, da mesma maneira que cada uma das minhas 3 ou quatro pranchas, simboliza um período da minha vida, não tem?

1 Comentários:

Anonymous Anônimo said...

Essa porra é muito complicada...

10:18 PM  

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