segunda-feira, outubro 02, 2006

Quase um conto de surf - Um haole perdido em uma ilha do Pacífico.

Verão passado, um email enviado por uma amigo que vive em Pago Pago, na ilha de Tutuila, Samoa Americana, bateu aqui no meu escritório em Honolulu. Dizia que uma violenta tempestade havia destruído as pedras que marcavam o túmulo de Malua. Esse amigo achava que eu deveria saber disso já que, recentemente, eu havia conhecido a história de Malua e de sua vida insólita. A verdade é que eu vinha conduzindo uma pesquisa arqueológica em Tutuila, não muito longe de Pago Pago, quando encontrei sua tumba num cemitério abandonado. Os samoanos tradicionalmente enterram seus entes queridos perto das suas casas ao invés de, como nós, manterem áreas especiais para isso. Então eu sabia que aquelas sepulturas descuidadas que eu examinava guardavam ossos solitários de pessoas de outros lugares. Tratava-se de um cemitério de forasteiros. Sepultados lá havia marinheiros do tempo em que a marinha norte-americana administrava Samoa – entre 1900 e 1951. Estavam também ali capitães de navios civis mortos longe de casa, depois de seus navios terem se destroçado sobre os recifes que cercam a ilha; outros presentes eram um ferreiro de New England, um ex-carteiro de Pago Pago que havia sido veterano da guerra civil americana, um marinheiro que foi assassinado e que fazia parte da tripulação de um navio mercante, uma mulher que morreu em rota para São Francisco, e vários vagabundos e aventureiros dos mares. A maioria das lápides era feita de concreto e algumas contavam até com monumentos de pedra.
Mas escondida em um canto estava uma tumba anônima, bem diferente das demais. Consistia apenas em um retângulo de pedras basálticas amontoadas, em um arranjo distinto, que lembrava a maneira com que os samoanos e outros polinésios deixavam sepultados os seus mortos no final do século XIX e começo do século XX. Eu quis saber quem ocupava este sepulcro singular e, se essa pessoa era mesmo um polinésio – como demonstravam estes arranjos funerários –, porque estava ele enterrado entre os estrangeiros.
Quando entrei no edifício dos Arquivos da Samoa Americana, tinha poucas esperanças de encontrar algo sobre o cemitério de forasteiros, mas como todo pesquisador precisa ter entre suas ferramentas um pouco de sorte, só posso creditar a ela o mapa que encontrei contendo todos aqueles túmulos numerados. Seis décadas antes, alguém não apenas teve a paciência de registrar túmulos e respectivos defuntos, mas também, quando possível, adicionou uma pequena narrativa sobre a vida e morte de cada um.
Voltei para o cemitério com o mapa e nele chequei a posição da sepultura misteriosa. Esta estava marcada com o número 5 e era ocupada por um tal “Malua, das Ilhas Salomão, o último tripulante de um barco que aportou em Tutuila em 1884”.

As Ilhas Salomão estão a aproximadamente 3.000 km a oeste de Tutuila. Como Malua e seus companheiros de embarcação realizaram essa viagem? Será que eles, a bordo de uma daquelas tradicionais embarcações salomoenses, empreenderam uma viagem ¬– por sabe-se lá qual objetivo – até Samoa? Ou seriam eles pescadores que perderam a rota e sobreviveram a algum inconveniente marítimo? O que aconteceu depois que eles chegaram? E o que foi feito de seus companheiros de tripulação? Pelo menos agora eu tinha um nome e uma data, o que, talvez, aumentasse as chances de êxito das minhas investigações.
E como depois descobri, a história de Malua, realmente incrível, foi inclusive registrada pelo jornal local, o falecido “Le Fa’atonu” (Samoano para “faça certo”). Aliás, vários contemporâneos de Malua escreveram sobre sua vida: um comandante da marinha americana, um aventureiro em excursão pelos mares do sul no começo dos anos vinte do século passado, um missionário mormon, e até mesmo o mestre escritor – e intrépido explorador do Pacífico – Robert Louis Stevenson. Suas versões não são completas tampouco consistentes mas fornecem peças para a montagem do quebra-cabeças e é nelas que baseamos este relato.
Politicamente, o arquipélago das Ilhas Salomão é dividido em dois: a parte leste compreende o território da Samoa Americana e a parte oeste constitui a nação independente da Samoa. Por volta de 1880, uma companhia alemã controlava a produção de copra (a polpa de coco seca) na parte oeste e, para isso, transportava trabalhadores para aquelas plantações. Alguns eram independentes, homens contratados temporariamente. Outros eram “blackbirds” – como os nativos do sul eram conhecidos em Samoa – e vinham para as colheitas geralmente à força, após serem seqüestrados em suas ilhas de origem.
Muitos desses trabalhadores, tanto os contratados quanto os “blackbirds” vinham de ilhas da Melanésia e entre esses estava Malua. Não se sabe se porque fora seqüestrado ou por não estar satisfeito com o que ganhava, mas Malua e outros três ou quatro companheiros, secretamente construíram uma jangada e partiram da ilha de Upolu, na Samoa do oeste, cruzando o traiçoeiro canal de 60 quilômetros que a separa de Tutuila. Stevenson, que vivia em Upolu naquele tempo, descreveu o ocorrido em seu livro “A Footnote to History: Eight years of Trouble in Samoa (1892)” da seguinte maneira: “Existem ainda três fugitivos nas florestas da Ilha de Tutuila, para onde escaparam em uma balça, e os samoanos estão alarmados com a presença destes forasteiros de pele escura em sua ilha. Um destes refugiados, pelo que me informaram, foi morto a tiros quanto tentava raptar uma virgem ilhôa. Além disso, estórias de canibalismo correm de casa em casa e os nativos se apavoram quando as ouvem”.
Edwin Taylor Pollock, governador da Samoa Americana por volta de 1920, nos deixou um diferente relato da destino dos fugitivos: “Um afogou-se ou foi devorado por um tubarão quanto tentava aportar, outro morreu ou foi morto depois de tentar abduzir uma garota samoana, um terceiro faleceu por volta de 1910, e o último permanece nas montanhas”.
O que quer que tenha acontecido com os outros foragidos, a verdade é que Malua e outro colega fugiram realmente para as montanhas de Tutuila, o que deu início ao surgimento de uma série de lendas. Alguns meses depois, este camarada de Malua apareceu na Vila de Aua por sua própria vontade ou por ter sido capturado, não se tem certeza, e foi trazido à presença do governador, comandante Benjamin Franklin Tilley. Um relato posterior, aparentemente baseado nos escritos de Tilley, descreve o homem, que não tinha sequer nome, como um “completo selvagem”, na altura de seus 45 anos, e muito temeroso pela própria vida. Usando rudimentos do próprio idioma misturados com alemão e inglês, ele dizia ter pavor dos samoanos mas, assim mesmo, recusava passagem para sua terra natal, as Ilhas Salomão. Falava ele que, devido ao longo tempo que manteve-se afastado de sua gente, estes poderiam não reconhecê-lo e tratá-lo como um estranho, podendo até matá-lo e comê-lo.
O que terminou acontecendo com esse apreensivo homem é desconhecido, mas antes de adormecer na escuridão da história, ele contou a todos na vila que Malua ainda estava vivo e habitava os mais ermos confins das montanhas. Malua tornou-se, então, o “Homem Selvagem” da Samoa. E como todos os mitos que surgem, este também veio acompanhado dos boatos e pavores provocados pelo misterioso – e provavelmente perigoso – homem “que arrasta gente para as montanhas”.

Quando se espalhou a notícia de um estranho homem a viver em algum lugar nas montanhas da Ilha de Tutuila, as reações óbvias: pais, para que os filhos pequenos viessem para casa, amedrontavam-nos a dizer que o homem selvagem os levaria. Malua teria sido culpado por qualquer porco ou galinha que desaparecesse. O Governador Pollock, em seus apontamentos, reportou que histórias de pessoas que viam o homem selvagem “eram geralmente recebidas com risadas”. Mas ele completou, que “também havia terríveis relatos sobre o desaparecimento de um ou dois habitantes que, se assumia, haviam sido raptados e comidos pelo ‘tamauli’”, como o Malua era tratado pelos samoanos (tamauli significa homem preto na língua local).
Porém, na primavera de 1923, os eventos tomaram um rumo inesperado. O samoano Ielu, conhecido por suas habilidades em escalar montanhas, deixou sua jovem esposa e a família em Upolo, mesma ilha de onde Malua havia escapado e também viajou para Pago Pago, em Tutuila, em busca de trabalho e dinheiro. Mas antes de conseguir um emprego, Ielu foi preso e condenado por roubo. Parte de sua pena ele cumpria trabalhando durante o dia na abertura e manutenção das estradas da ilha. Rapidamente Ielu caiu deprimido por seu destino e resolveu se suicidar escalando o topo da montanha mais próxima de onde pularia para a morte. Foi então que, fugindo da estrada onde trabalhava, rapidamente despistou seus perseguidores e se enfiou pelas montanhas adentro.
Quando alcançou um remoto precipício onde imaginava terminar sua vida, Ielu ouviu, na quietude dos arredores, cocos caindo um a um ao chão. O ritmo dos sons sugeriam que alguém estava nos coqueirais, a colher os frutos. Quando Ielu virou-se para averiguar essa tão improvável possibilidade, encontrou-se cara a cara com o desnudo homem negro. Algo, talvez o mais instintivo impulso de “captura do homem selvagem”, fê-lo com que se lançasse em luta com o outro, não menos fugitivo. E então, como era de se esperar, o mais jovem levou a melhor. Ielu subjugou Malua, cobriu sua nudez com um pedaço de tecido rasgado da própria lavalava (a típica saia samoana) e, após uma longa caminhada montanha a baixo, entrou com seu prisioneiro no departamento de justiça local. Provavelmente, esta foi uma visão das mais surpreendentes para a população.

E, a este ponto, a história continua a tomar caminhos não imaginados. Ao invés de ser executado, exposto, ou tratado violentamente pela população, Malua, que a esse tempo já passava dos 60 anos e tinha a cabeça coberta por cabelos brancos, foi muito bem recebido pelos que lhe capturavam. Pentearam-no, deram-lhe roupas, alimentaram-no, provou doces – os quais disse ter adorado – e se sentiu como se fora um membro da família que há muito não se via.
O inusitado de tal recepção se deveu ao fato de que os samoanos já haviam, neste tempo, criado uma sociedade na qual a ninguém era permitida a orfandade, a fome, ou a falta de um teto. O comportamento cortês e a amigável hospitalidade eram quase uma religião. Claro que os samoanos ainda tinham a capacidade de definir quem era local e quem era forasteiro e também compartilhavam com o resto da humanidade um terror mórbido pelo homem selvagem. No entanto, uma vez confrontados com a misteriosa figura das florestas em carne e osso, os polinésios o acolheram como se Malua fora um deles. Qualquer estigma que ele pudesse anteriormente carregar foi rapidamente dissipado pelo envolvente senso de humanitarismo local.
Nas semanas que seguiram à sua chegada, Malua criou laços particularmente fortes com a pessoa que o capturou: Ielu tornou-se seu fraterno salvador. Mesmo com ele de volta à prisão e aos trabalhos nas estradas, Malua não o largava: dormia no chão da cela do “irmão” e o ajudava no trabalho. Eles eram inseparáveis.
Infelizmente, o conto do homem selvagem de Samoa não teve um final feliz. Depois de quase quarenta anos de uma vida isolada, saudável e desnuda nas florestas, Malua sobreviveu apenas três meses antes de cair gravemente doente de civilizada pneumonia. Morreu em 5 de setembro de 1923, no hospital naval de Pago Pago e foi sepultado, em estilo polinésio, no cemitério de forasteiros.

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Extraído do artigo "O selvagem de Samoa ou um Conto do Cemitério de Forasteiros" publicado na Natural History de fevereiro de 2004. Traduzido por Eduardo Faria.

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