domingo, setembro 23, 2007

A Mãe do Surf - 2ª parte

A primeira parte está no post abaixo. Eu ia fazer em duas partes, mas ainda falta mais um pedaço que publicarei na semana que vem.

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Não é difícil entender porque Frederick Kohner fascinou-se com as estórias da praia contadas por sua filha. Ele e seus dois irmãos cresceram na Tchecoslováquia, na cidade de Teplitz-Schorau. Seu pai, Julius, era dono do cinema local. Em 1921, Paul, o primogênito, uniu-se à primeira leva de imigrantes judeus que se mandou para Hollywood. Em poucos anos, ele já era um agente poderoso, empresariando clientes do naipe de Ernest Hemingway e Ingmar Bergman. Walter, o mais novo dos irmãos, mudou-se para Viena e ingressou em uma escola para atores. Frederick embarcou em uma carreira de roteirista, na Alemanha, de onde partiu após assistir à estréia de um seus filmes, em Berlin, e descobrir que Goebbels tinha ordenado a remoção de todos os créditos com nomes judeus da fita. Foi para Los Angeles e encontrou trabalho na Columbia Pictures, estabeleceu-se na praia com sua mulher e criou duas filhas. Roteirista produtivo, teve, inclusive, um de seus trabalhos indicado para o Oscar de melhor filme em 1938.

O sol de Hollywood lançou seus encantos sobre os filhos dos imigrantes do leste europeu, principalmente durante a fabulosa década de 1950. Gidget passou a despender todo seu tempo livre na praia - depois da escola, depois do trabalho, ou quando sua família visitava amigos da colônia judia de Malibu. "Eu e meu pai caminhávamos até a praia", lembra, “e eu lhe falava a respeito de todos os surfistas e da vontade que tinha de escrever um livro. Foi então que ele sugeriu ‘por que você não me conta essas estórias e eu as escrevo?’. ‘Ok’, concordei”.
Gidget se tornou musa do próprio pai, narrando-lhe contos sobre bitchin' surf (nota de tradução - algo como surf radical, eu acredito), morras gigantes que vinham do japão e de como escapava da morte após vacas impressionantes. Deslumbrado, Frederick prestava total atenção à linguagem de sua filha (que tinha o inglês como primeira língua. A dele era o alemão). Com permissão dela, ouvia, inclusive, suas conversas telefônicas. Totalmente envolvido pelo assunto, Frederick escreveu o livro em seis semanas, transformando as estórias e conversas de Gidget em um elegante romance, publicado em 1957. A obra refletia as preocupações daquele tempo, da bomba atômica a Fats Domino, apesar de um tema ser o dominante: a paixão de Gidget pelas ondas do mar.
"O grande Kahoona", a personagem de Gidget no livro explica, "me mostrou, na primeira vez, como me ajoelhar, levantar os ombros e puxar o corpo, para rapidamente me levantar, com um pé atrás e outro mais na frente em apenas um movimento. Coisa bem complicada. E então, quanto mais eu tenho a manha de pegar onda, mais eu ficou louca para surfar e quanto mais louca eu fico, com mais afinco eu me dedico". Esta é uma das melhores descrições do ato de surfar que eu já li e apenas gostaria de ter lido isso antes, quando era uma garota que brincava com pedaços de madeirite nas ondas nojentas do lado Erie.
No final deste encantador conto de verão, enquanto Moondogie confrontava Kahoona por ciúmes, Gidget voava em sua prancha. Era um clássico dia de bitchin' surf e, realmente, quebravam altas e grandes ondas. Em um momento épico que se perdeu nas incontáveis versões e remontagens para cinema e tv, naquela passagem que transformou este livro em uma espécie de O Apanhador no Campo de Centeio (dêem uma googlada e descubram que livro é esse) para meninas, Gidget ignora os avisos de seus amigos e continua remando para o outside. Desafiando as convenções sociais – ao não voltar para o santuário da terra firme e para sua vida de classe-média – e sem qualquer interesse pelo o quê lhe aguardava nos próximos anos, tudo o que ela queria naquele instante era surfar, segura de que qualquer que fosse seu futuro, ela sempre estaria entre os melhores. "Arrepia, Gidget", gritavam os rapazes enquanto ela descia mais uma. "Arrepia, Gidget". E ela arrepiava mesmo.
Então, bem antes da onda feminista das décadas seguintes, o livro leva a uma conclusão radical, nunca transmitida por qualquer uma das outras versões de “Gidget”: a percepção da personagem de que nunca esteve apaixonada por Moondogie ou por Kahoona - ela era demais para previsíveis garotos. O que ela realmente amava era sua prancha e o mar.

Quanto terminou seu pequeno surf-romance, Frederick mostrou-o para Paul, que o detestou e mandou o irmão procurar outro agente. Frederick, então, procurou William Morris e um contrato de lançamento foi imediatamente fechado, incluindo os direitos de filmagem, que foram vendidos à Columbia por US$ 50 mil. Frederick deu 5% a Gidget (ato que, hoje em dia, seria chamado de compra dos direitos de uso da história).
O livro estourou alguns meses antes do famoso Lolita, de Vladimir Nabokov – outra estória escrita por um imigrante europeu que também trazia uma menina adolescente como protagonista – e comparações favoráveis a Frederick foram publicadas. A crítica aclamou o trabalho original de Kohner que trouxe à tona uma curiosa subcultura, que também surpreendia pela quantidade de gírias americanas aprendidas pelo escritor estrangeiro. O surf explodiu muitos anos depois; quem melhor para divulga-lo do que o próprio pai da fada marinha Gidget, um homem que fugiu da Europa Central e foi hipnotizado pelas ondas e por aqueles que as cruzam em busca da liberdade?

Enquanto passeava pela cozinha de Gidget, ela me falava de um segredo a ser revelado: seus diários e álbuns de fotografias – os cálices sagrados da cultura contemporânea do surf – estavam dispostos sobre a mesa. Ela os trouxe de um esconderijo secreto antes de minha chegada. Além de surpresa, eu estava um pouco nervosa, afinal, que gênio sairia desta lâmpada depois que eu abrisse aquelas capas?
“22 de julho de 1956.” Gidget lia, “Fui para praia hoje de novo. Eu amo aquilo lá. Caí três vezes mas peguei apenas uma onda. Sentamos todos no ‘buraco’, fumando e bebendo. Deus impediu que meus familiares me vissem ali (Gidget alega que, apesar de possuir e estar presente em várias fotos do “buraco”, não lembra de ter bebido alguma vez).
Ela briu um dos álbuns e passeou pelas páginas de fotos em preto e branco até que algo atraiu sua atenção. “Oh, meu deus”, disse, “olha isso”. Era uma bela foto do “buraco”, que não passava de uma área mais baixa da praia, onde ela costumava se sentar e fumar na companhia de Mickey Dora, Tubesteak e outro surfista legendário chamado Johny Fain. Era o tipo de foto pela qual qualquer colecionador arriscaria a vida. “Ouça isso”, falou, cada vez mais empolgada com as memórias que aquelas imagens ressuscitavam.
“16 de junho de 1957. Cara, hoje o dia foi demais. Todo mundo estava na praia. Peguei altas ondas e todo mundo viu”. Ela me sorriu e passou para o próximo álbum. “3 de agosto de 1957. Hoje tinha altas. Nem pude acreditar. Peguei umas boas”.

Um cartão de visitas, que caiu do meio das páginas, continha o seguinte:

The Glen
Ligue ou apareça quando quiser.
937 No. Beverly Glen
GR 9-6945

“Oh, meu deus”, repetiu Gidget, estudando o cartão enquanto era transportada para a cena. “Isso veio daquela famosa festa no The Glen, quando todos baixaram...” [continua na próxima semana]

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