terça-feira, novembro 16, 2004

Análise filosófica do surf enquanto esporte e outras coisinhas.

Olha, apesar de nunca ter sido um bom praticante, eu gosto muito do surf. É um esporte muito saudável, muito bonito, muito completo, que se pratica na praia, um dos meus ambientes prediletos. Não me interesso muito pela sua face competitiva, que me parece de tão difícil avaliação, algo tão relativo quanto julgar salto ornamental ou nado sincronizado, mas a atividade em si, é impossível não admirar. Comparado com outros esportes, o surf está anos luz na frente, pelo menos no quesito “fazer sentido”. Porque é compreensível que se sinta prazer surfando. Deslizar sobre a onda é algo perfeitamente entendido como sensacional, ao passo que jogar futebol, por exemplo, se pararmos para pensar, não tem nada a ver. Costumo bater bola toda a semana – apesar de também ser péssimo jogador – e em todas as manhãs seguintes a uma pelada, com o corpo todo dolorido, me questiono sobre a existência de sentido no ato de correr atrás de um pedaço de couro cheio de ar, tentando a pezadas, empurrá-lo entre pedaços de madeira. Mais carente de sentido ainda é torcer por um time, ir ao estádio, gritar, xingar – alguns até se agridem, se matam às vezes – e ficar triste se os onze caboclos do grupo pelo qual se simpatiza colocaram menos vezes a bola entre os pedaços de pau do que os onze cabras do outro grupo. Não é só o futebol que necessita de sensatez: é estranho ficar feliz porque aquele lutador de judô brasileiro ganhou uma medalha de bronze na olimpíada, ou decepcionado se a nossa jogadora de badminton – a famosa peteca – perdeu já na primeira fase. Imagine, peteca!
Por isso, sempre digo que mais ilógico do que os esportes, é o mundo que cerca cada um deles. É a cartolagem do futebol, o desperdício de dinheiro da NBA ou da fórmula 1, o culto a falsos ídolos, a violência, etc. E é uma pena que o ambiente do surf, disciplina esportiva, como disse, tão distinta das demais, seja também repleto de matérias pouco coerentes com o bom juízo, como o localismo, a violência e os clichês comportamentais dos praticantes. Algo que também não condiz com a estética do surf é a falta de criatividade dos aspectos culturais que o cercam: suas revistas são chatíssimas, sempre com as mesmas fotos e reportagens, seus livros – os poucos existentes – fundamentam-se na mesma linha “muita foto” das revistas, seus filmes são quase sempre horríveis.
Esses tempos me emprestaram um vídeo que diziam ser sensacional, que não trazia só gente surfando e que, além disso, também era engraçado. O assisti rapidamente, curtíssimo que era – nem lembro o nome – e as cenas de humor resumiam-se a uns caras se jogando sobre pranchas na escada do prédio deles. E também havia uma espécie de mendigo que eles, a troco não sei de que, comandavam, e que se jogava nesta mesma escadaria, acabando por estabacar-se nos degraus, dando cabeçadas na parede. Deprimente.
Mas para quem gosta de surf e não se considera um de seus estereótipos, para quem se encarna no esporte mas ainda mantém o juízo na hora de escolher um filme para ver, ainda há opções. Há uns dois anos, por exemplo, durante uma insone madrugada, liguei a televisão e tive a sorte de ver o melhor filme de surf em que já botei meus olhinhos. O nome da película em português era “O Mar Mais Silencioso Daquele Verão”, do diretor japonês Takeshi Kitano. Não é filme cult chato, nem é cheio de robôs, monstros e caratê como quem não conhece muito poderia esperar dos filmes japoneses. Também não é como esses típicos filmes de surf que só mostram gente surfando os mesmo tubos e batidas, fazendo as mesmas caretas, ou outros comportamentos padrão e gritos de uhuu. É, sim, uma prova de que se pode gostar de assistir surf e não ser bitolado.
Trata-se da história de um lixeiro surdo-mudo que encontra uma prancha velha no lixo e resolve aprender a utilizá-la. E em suas idas à praia, vai sempre acompanhado de sua namorada, também muda. Inicialmente, a galera do pico, os locais (como sempre), hostilizam o rapaz, riem dele que, determinado, dedicava todas as suas horas de folga às ondas. Numa de suas sessões, ele é observado pelo dono de uma surfshop das redondezas que resolve apoiá-lo e, após algum treinamento, o convence a participar do campeonato local. No entanto, seu primeiro intento competitivo falha, no momento em que ele não ouve o anúncio de sua bateria. Na seqüência, em reconhecimento a perseverança do rapaz, a galera da praia o aceita, e ele com a namorada ganham respeito da rapaziada.
Mas o melhor do filme, o verdadeiro protagonista, é o silêncio. O silêncio do mar observado pelo surfista surdo, o silêncio da namorada, o silêncio total. A beleza do filme está no silêncio das ondas.
Outro filme de surf diferente, não tão legal quanto esse japonês de cima, mas bonzinho, é o inglês “Blue Juice” que recebeu o infame título em português de “Na Crista da Onda”. O interessante desse filme é que ele foi rodado em Cornwall, na Inglaterra, lugar onde – conforme disse um crítico aí da internet – durante 350 dias é frio demais e nos outros 15, não tem onda. Mas há uma historinha bacaninha, umas piadas boas (há até um surfista gordo que é apaixonado por uma vaca), tem umas paisagens totalmente diferentes daquelas dos outros filmes de surf e tem também a participação da então pouco conhecida Catherine Zeta Jones.
Outra coisa boa desses filmes aí que eles mudam um pouco o palco dos vídeos e filmes de surf. Saem o Havaí, a Califórnia, Indonésia, etc, e entram o Japão e o interior da Inglaterra. Porque, a onda havaiana todo mundo já conhece, todos já sabem o que vai acontecer: o cara vai dropar, entrar no tubo e vai comemorar quando sair. Isso se não despencar lá de cima e se arrebentar nos recifes. A Califórnia é a mesma coisa, aqueles piers, aquelas praias feias, aquela gente loira sentadinha na areia, tudo igual.
Eu considero o surf algo fabuloso, mas não sou obrigado a gostar de todas as mesmices e besteiras que o circundam.