terça-feira, agosto 22, 2006

Opressão

Aí, no começo dos anos 1980, estava rolando um campeonato importante na Praia Mole, um nacional ou um desses W alguma coisa, e aquele repórter sem-noção da TV local, um com um jeitinho esquisitão, perguntou para aquela gatinha sentada na areia: “qual você prefere, o surfista ou o salva-vidas?” E o surfbroto respondeu: “o surfista, né, he he he”. O repórter ainda quis saber o porquê da resposta, se tanto o surfista quanto o salva-vidas estão sempre em forma, bronzeados e tal. No que ela respondeu brilhantemente: “ah, sei lá, né, he he he”.

Essa resposta de poucas monossílabas teve um impacto determinante na minha vida. Foi decisiva, encurralante, um xeque-mate, um verdadeiro golpe de misericórdia. Graças a ela, no outro dia comprei calção, camiseta, uma prancha velha e me tornei um surfista.
E hoje, às vésperas de completar 40 anos, não recordo a primeira vez em que ouvi falar em surf, mas lembro perfeitamente dos efeitos dele sobre minha adolescência, dos estragos – é, dos estragos mesmo – que ele fez no meu saudável desenvolvimento pessoal. Hoje posso dizer conscientemente que fui obrigado a adquirir uma prancha, fui coagido a levá-la para a praia, tive que me vestir e comportar como se o surf fosse a coisa mais importante da minha vida quando, na verdade, nunca tive qualquer vocação para o negócio. Sim, porque eu sempre fui um banana: aos 13, 14 anos, eu preferia ler gibis e ver TV, e já era barrigudinho. No máximo batia uma bolinha aos domingos. E, hoje, nem penso que o fato de eu não ter sido lá muito esportivo fosse algo depreciativo, afinal, cada um, cada um.
Mas para 99% dos adolescentes dos anos 1980 – incluindo eu –, quem não pegasse onda em Floripa era um bananão meeesmo e essa coisa de “cada um, cada um” não teria a menor chance. Era surfar ou não ter amigos. Era ter uma prancha, ou ser solitário. Era manter o cabelo clareado, penicóide, ou, na ordem de grandeza das gatinhas, valer menos que o salva-vidas.
E naquele domingo ensolarado, de um verão extraordinário, eu assisti àquela entrevista ao voltar para casa depois de ter tentado jogar futebol, depois de ter procurado alguém jogando basquete, depois de me descobrir sozinho entre as quadras esportivas. Não havia um ser vivente nas redondezas. todos estavam surfando.

Embarquei naquele fusca, depois de prender com extensores minha prancha no rack, e fui para a praia, eu e mais quatro caboclos. E, já de saída, os quatro me zoavam por eu ser estreante – não que eles fossem lá muito experientes, afinal éramos todos suburbanos –, por eu ter uma prancha tão tosca e feia, por eu estar usando o calção e a camiseta novos, por eu não saber enganchar o extensor direito, por não ter trazido parafina, por ainda não ter tirado a cordinha da embalagem, por eu estar tenso e com medo, por eu ser todo branco e pelos três sanduíches que minha mãe havia preparado e posto em um saco plástico transparente. Essa era a minha bagagem: minha prancha feia, minha cordinha ainda na embalagem e meu saco plástico com três sanduíches.
A verdade é que eu não me preocupava muito com o surf em si. Pensava que seria fácil, que qualquer idiota poderia fazer. Afinal, tantos – idiotas ou não – já o faziam. E foi assim que amarrei de qualquer maneira a cordinha nova no copinho da prancha feia, enrolei a outra ponta no meu tornozelo e entrei na água. Tentei remar atrás dos meus companheiros de barca mas mal conseguia me posicionar sobre a prancha: ou ela afundava na frente ou balançava muito; e vinha o espumeiro que me derrubava ao mesmo tempo em que a rapaziada, que já estava lá fora, me acenava para que os seguisse. Naquele desespero todo, parecia que eu não ouvia nada, nem o barulho do mar, nem os gritos das crianças na beira, nem o vento, nada. Só escutava os meus próprios pensamentos que, em meio a uma exaustão total, me interrogavam sem parar: o que é que eu estou fazendo aqui?
Desci da prancha e resolvi empurrá-la, jogando-a por cima dos espumeiros, caminhando para passar a arrebentação. Já estava muito cansado, muito nervoso e com a água pelo pescoço quando trepei de novo desajeitadamente na feiosa e voltei às tentativas de remada. Por uma sorte – ou azar, talvez – as séries deram um tempo e tive êxito. Cheguei ao outside e tentei me sentar mas, sem equilíbrio, obviamente desisti. Deitado, pressionando peito e barriga na prancha, tentava desesperadamente respirar, apavorado, imaginando que ali, onde estava, era fundo e não dava pé. Continuava não ouvindo nada, nem o mar, nem os outros que me zoavam incansavelmente, quando de repente notei que aquelas caras que há pouco riam de mim, passaram a remar sem parar. Era uma série que se aproximava e, quando me dei conta dela, tentei buscar uma posição para a remada. Mas fiquei muito na frente e o bico afundou. Me recoloquei mais para trás e o bico levantou muito, o que impedia o deslocamento.
Já a primeira onda me pegou em cheio. A porrada me jogou para o fundo ao mesmo tempo em que sentia a cordinha puxando o meu pé para cima. Rolei na areia do fundo por alguns metros e só recordo dos pensamentos mais bizarros que me vinham naqueles momentos, naqueles segundos em que vagava ao sabor da corrente, no fundo do mar, quase sem ar, quase afogado, quase sem consciência. Pareciam sonhos, parecia que eu não estava ali mas sim, em minha casa, assistindo à entrevista na TV. “Ah, prefiro o surfista, né, he, he, he”. A risada daquela menina linda que preferia os surfistas era o único som que viajava comigo naquela trip submarina. Engraçado é que são os pensamentos que nos fazem reagir ou não em momentos como esses. E, no último instante, no último milésimo de segundo, no último miligrama – ou mililitro, sei lá – de oxigênio que ainda me restava, me veio à mente o meu saquinho de pães que minha mãe preparou e que estava lá na praia me esperando. Foi o impulso que me salvou: finquei os dois pés na areia e subi. Me levantei e estava com a água um pouco acima da cintura e as crianças, que antes eu não conseguira ouvir, brincavam ao meu redor.
Sentei-me na areia, sobre a prancha – aquela bosta dava um bom banco, pelo menos –, em uma parte da praia de onde eu poderia ver o mar sem enxergar meus colegas de barca que ainda, lá de fora, me faziam sinais engraçadinhos. Destruído moral e fisicamente, com frio, recebia o sol nas costas como um prêmio de consolação por tanto sofrimento. Abri meu saco de sandubas com cuidado para não molhá-los e passei a saborear cada um vagarosamente, para que eles durassem o máximo possível. É que, àquela altura do campeonato, eles tinham mais que sabor de sanduíche. Eles tinham o gosto da minha casa e da comida que minha mãe fazia. E naquele dia, naquela praia linda, naquela hora, sob aquele sol maravilhoso daquela manhã de um verão extraordinário na Florianópolis de 1981, o que eu mais queria era a minha suburbana casa. O que eu mais desejava era a comida da minha mãe.