segunda-feira, outubro 23, 2006

Surf Music

Experimentem esse link: http://www.phys.uu.nl/~leow/Dave%20Brubeck/Time%20Out/

Nele estão todas as "faixas" do inesquecível e básico album Time Out do Dave Brubeck. Baixem cada uma delas, depois ponham Take Five para tocar. Aí, fechem os olhinhos, imaginem aquela cena do último DVD que veio na revista, na qual o "Queres Leite" arrepiava. Não é a melhor das trilhas sonoras?


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Obs.: Todos sabemos que é ilegal fazer downloads de músicas na internet. Então, baixem essas, experimentem uma por uma, e depois deletem-nas de seus discos rígidos. Se gostarem, dirijam-se à loja mais próxima em busca do cd. E tem mais: não fui eu quem disponibilizou essas coisas na rede. Apenas as encontrei.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Lendas do Surf Suburbano I – O surf cafajeste de Paulo Picareta.

Lá no Estreito havia um cara, um surfista, que levava uma vida bastante curiosa. Não adianta, não vou dizer o nome dele mas vamos chamá-lo de Paulo Picareta. Ele tinha uma apelido mais ou menos igual a esse e quem o conheceu vai lembrar na hora. Eu não tinha nenhuma amizade com essa figura, mas soube de muitas das suas histórias sobre quais não posso garantir total veracidade, é claro.
Vamos, então, descrevê-lo: cabelo clareado (com parafina, tinta, sei lá), tatuagens enormes (incluindo o indefectível dragão), sempre bronzeado, sempre cheio de gatinhas e sempre, sempre duro de grana. Essa última característica era a que fazia Picareta – num ato de desespero – se virar de qualquer maneira e, por isso, foi ela que lhe deu esse apelido carinhoso. Mas, antes de mais nada, o Paulo era uma pessoa popular – todo mundo conhecia – apesar de ele, no meu entender, não ter muitos amigos. Primeiro porque ninguém o levava muito a sério, segundo porque ele não tinha concentração suficiente para amizades. Acredito mesmo que ele não conseguiria prestar a atenção em qualquer coisa por muito tempo, muito menos numa pessoa. A não ser, é claro, que essa pessoa fosse do sexo oposto. Nesse caso, Picareta poderia dedicar até algumas horas de devoção. Era uma criatura simpática, o Picareta, ninguém pode negar.
Quanto ao surf, bem, aí é que a coisa pega: o nosso Picareta era calhorda, não surfava nada. O que era compreensível já que, pobre, não tinha muitas condições de ir à praia constantemente e, diziam os maldosos, tinha um pouco de preguiça de passar arrebentações, remar correntezas, essas coisas que – eu compreendo – são chatíssimas. É, ele não pegava onda. Mas fazia onda que era uma beleza. Tanto que, quem não conhecia esse detalhe, quem nunca o havia visto surfar ou tentar fazê-lo, apostaria na ferocidade do seu surf. Tenho certeza que até ele mesmo acreditava. Porque só dessa forma, só acreditando muito no que diz, se consegue não deixar dúvidas em ninguém.
Poucas vezes ele cometeu falhas que comprometessem seu cartaz. E nessas poucas vezes, a falha resultou dessa autoconfiança maluca que ele tinha. Esse negócio de acreditar nas próprias fantasias, não tem? Um desses momentos se deu quando, se eu não me engano no Morro das Pedras – praia onde o pessoal do Estreito é local – estava acontecendo um campeonato entre os estreitenses. O Picareta, que estava ali só de passagem, não se conteve quando a rapaziada, todos conhecidos, botou na sua cabeça que o campeonato estava prá ele. Não foram necessários muitos “vai Paulo, vai Paulo” para ele entrar em um transe alucinógeno-vaidoso e esquecer que não tinha surf suficiente nem prá enfrentar o Morro, quanto mais prá um campeonato. E ele se inscreveu. Quando deu por si, “Inês já era morta”.
Pior é que o mar não estava pequeno e acredito que ele só se tocou da cagada quando teve que furar a primeira espuma, aquela que esfriou a sua cabeça. Porque, quem o viu entrando n’água, diz que suas feições sérias pareciam indicar que a bateria estava no papo mesmo. Mas após esse primeiro espumeiro, esse que o trouxe de volta à areia e à vida real, posso imaginar o conflito mental que se estabeleceu em cima da sua prancha, o medo do Morro das Pedras grande misturado à vergonha de mal conseguir surfar, nem ficar em pé direito e, acima de tudo, o medo de ser descoberto. Meu deus, Picareta teve que botar todos os seus criativos neurônios prá batalhar uma saída enquanto se esfalfava brigando contra a arrebentação. Essa, a arrebentação, ele passou se valendo mais da boa forma física que mantinha – era um grande nadador da praia do Cagão – do que da experiência de surfista. Quando ele chegou lá fora e sentou todo desequilibrado na prancha é que, imagino, olhou pro céu e perguntou: “e agora?”.
E a solução abençoada veio. O raciocínio simples e, ao mesmo tempo, espertíssimo deve ter sido o seguinte: se não posso revelar que não surfo nada, o jeito vai ser.... não surfar. E assim fez Picareta, ficou lá fora, na segurança, remando prá lá e prá cá. De vez em quando ameaçava descer uma mas, é lógico, puxava o bico e socava o mar, como que queixando-se da falta de sorte. Detalhe é que seus adversários se empapuçaram. E assim a bateria passou, Picareta pegou uma qualquer lá – das menores, é óbvio – e veio de jacaré.
“Dei azar, não estava me sentindo bem, aquele pão com mussi que a mãe me deu no café não me fez bem, tô cheio de gases”. Pronto, ninguém fez muitas perguntas. Alguns se solidarizaram, outros sentiram até pena da suposta situação gástrica do cara. Picareta estava salvo.
Mais fantástico ainda é que as meninas, muitas, que visitavam o quarto do Picareta – que não só tomava café mas também morava com a mãe – diziam, pasmem, que lá existia uma estante lotada de troféus. O cara, se medíssemos pelas taças, havia sido campeão de uma enormidade de torneios, campeonatos, etc. Alguns de amplitude estadual. Como? Só havia uma explicação: mandava fazer, ou gravava ele mesmo, os próprios troféus. E com estas armas, ele “matava” as cocotas no seu quartinho. “Pôoo, Paulinho, tu já ganhou todos estes campeonatos?”, perguntava a gatinha inocente. “É, eu dou as minhas cacetadas”, dizia o Picaretaço, todo orgulhoso. O guri era um gênio.

terça-feira, outubro 17, 2006

Ensaio sobre o localismo na Ilha de Santa Catarina

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O texto a seguir, colaboração do fiel leitor Edu Faria, tinha como destino uma revista. Mas, como não foi aprovado, acabou aqui, no Blog do Pierre, espaço aberto para os pouco talentosos.

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Um dos resultados do crescimento populacional em Florianópolis é o surgimento de um certo desconforto entre os surfistas nativos, assustados com a quantidade de gente a disputar ondas nas praias da Ilha. Assim, ao mesmo tempo em que existe uma comunidade no Orkut denominada “quero ir morar em Floripa”, existe outra composta basicamente por nativos da cidade, entitulada “Fora Haole”. Casos de violência já aconteceram e foram pauta da imprensa local e até do Jornal Nacional. Seria o localismo na Ilha de Santa Catarina assim tão assustador?


EM SANTA CATARINA, como em outros cantos do Brasil, as praias são públicas. Esta é a premissa básica que deve reger o comportamento de todos os que frequentam as beiras de mar deste Estado. Depois desta regra fundamental e oficial, existem outras não menos oficiais que também regulam o comportamento dos praieiros.
Para os que preferem embarcar, a Marinha mantém para todo o litoral brasileiro várias normas de circulação de barcos, lanchas, jetskis, canoas e tal. São exigidos registros, documentação, autorizações, enfim, uma burocraciazinha básica. Aqueles que vão pescar também precisam seguir uma série de códigos que controlam desde horários e locais para se jogar linha e anzol, até o direito de deixar redes espalhadas pela costa. Não se pense que qualquer um pode sair mar a fora largando redes. A coisa não é tão simples.
Em algumas das praias mais concorridas de Florianópolis existem placas divulgando regras e horários para a prática de esportes de areia como o frescobol, o futebol e o vôlei. Não que os praticantes as obedeçam – eles gostam mesmo é da muvuca –, mas que elas existem, existem. De acordo com outra norma que a rapaziada não dá muita bola, animais de estimação são proibidos na areia mas, mesmo assim, esse pessoal que não tá nem aí sempre traz seus totós e lulus para tomar um sol e se refrescar. A lei está de olho até na menina que quer apenas um bronzeado: topless, por exemplo, é atentado ao pudor e dá até cadeia.
Com tantas leis e regras institucionalizadas controlando o que fazemos no litoral, é incrível que até hoje não se tenha qualquer norma que organize a prática do surf no Brasil. É impressionante que exista a preocupação com bolinhas de frescobol perdidas mas nenhuma apreensão com a principal atividade náutica praticada neste pais. Não que fossem necessários registros e números para as pranchas, nem arraiz (a carteira de motorista dos navegantes) para todos os surfistas mas certamente algumas regrinhas de conduta, de convivência e de limites seriam bem vindas.
Tanto são necessárias que, na falta dos oficiais, os próprios surfistas vêm, há décadas, criando, implementando e seguindo – ou, em muitos casos, impondo – os seus próprios códigos de conduta para a atividade, códigos estes que, segundo eles, seriam universais, imprescindíveis e todos que se jogam com uma prancha sobre as ondas, sem exceção, têm que obedecer. Um exemplo: em algum momento da história do esporte, alguém disse que aquele que dropa mais dentro da onda tem o direito sobre ela. Outro que se aventurar na frente deste que tem a prioridade estará "rabeando" e, assim, quebrando uma destas regras naturais do surf. Quem surfa tem que conhecer esta lei, mesmo que ela não esteja escrita em nenhum lugar, mesmo que nenhum poder legislativo governamental a tenha decretado.
É em outro princípio deste código de cavalheiros que se fundamentam alguns nativos dos mais diversos surfspots ao redor do mundo quando decidem quem pode e quem não pode surfar as principais ondas de um lugar. O preceito é chamado de localismo e se resume em um ponto: os nativos têm prioridade sobre as ondas. Os haoles (termo havaiano que ajuda a evidenciar a internacionalidade da coisa) só podem, quando podem, pegar as sobras. E a quem infringir este regulamento caberá repreensão que, dependo da poder de reação do transgressor, poderá se transformar em um convite para se retirar da água ou da praia, poderá também se manifestar na forma de carros riscados, pneus furados, agressão generalizada e por aí vai.
Essas coisas independem do nível de desenvolvimento sócio-econômico do país onde acontecem e se equivalem em violência por todas as longitudes e latitudes do globo: no Havaí, faz tempo que os Black Trunk arrepiam na truculência. Na Austrália, recentemente, um surfista foi surrado covardemente por uma turba de locais só por ser brasileiro, e outro patrício, na Califórnia, precisou chamar a polícia para, pelo menos uma vez, poder entrar na água. O mais incrível é que tudo isso acontece à margem das leis do Estado. Trata-se de um poder paralelo, de um outro estado ou, ainda, da ausência dele.
Em Florianópolis a coisa não poderia ser diferente. Destino nas últimas décadas de migrantes oriundos de todo Brasil, principalmente gaúchos e paulistas – dentre eles muitos, mas muitos surfistas – a cidade convive hoje com a intensa especulação imobiliária, com a devastação ambiental e com a, digamos assim, total descaracterização sócio-cultural ou, em outras palavras (essa é a principal queixa dos nativos), o engolimento da cultura e da personalidade nativa (seja lá o que isso signifique) por outras alienígenas migrantes.
E dentro da água, naturalmente, a coisa também virou um inferno. Gritos, xingamentos, pessoas expulsas d’água, fatos que viraram manchetes na mídia local e até na de âmbito nacional. Apontou-se a existência de um movimento organizado intitulado “Fora Haole”, que abrigaria mais de 2 mil manés (como os nativos se intitulam) e que seria o responsável por esses atritos com surfistas visitantes, por estas rusgas com turistas que pegam onda.
A verdade é que o localismo praticado na Ilha de Santa Catarina teria a mesma intensidade – ou de repente é até mais brando – que o praticado em algumas praias do Rio de Janeiro, do litoral norte Paulista ou, mesmo, naquele institucionalizado na praia de Atalaia, em Navegantes, município próximo de Florianópolis, onde o fenômeno já virou tradição. O problema é que estes casos mais exacerbados a despontar na ilha contrastam com a presença de Floripa nas páginas de todos os cadernos de viagens nacionais e até nos do New York Times, destoam da imagem de qualidade de vida e segurança que a cidade divulga proporcionar a seus habitantes e turistas, não batem com a visão idílica do lugar e de seus manés tão hospitaleiros. Mesmo que os conflitos sejam pontuais, mesmo que a coisa não seja assim tão feia, a impressão que a mídia não especializada tem, ao ouvir relatos de um ou dois episódios violentos, é que há algo errado no paraíso.
“Começamos a ver pela cidade um monte de carros com o adesivo ‘SOS PRAIA MOLE’ e notamos que quase todos tinham placas de São Paulo ou do Rio Grande do Sul. Aí, para zoar, fizemos uns 50 adesivos com a inscrição ‘SOS FORA HAOLE’, que até rimava”, lembra Alexandre Veiga, 33, surfista há 28 anos e ex-presidente da Associação de Surf da Joaquina. “Sem querer, lançamos uma idéia que fugiu completamente do controle”, lamenta Veiga. Não que o localismo não existisse antes dos famigerados adesivos. Para Alexandre Fontes, 46, vereador em Florianópolis, presidente da Federação Catarinense de Surf e praticante do esporte desde 1973, “desde que comecei a surfar, existe localismo na Ilha. Mas, como éramos poucos a praticar o esporte por aqui, nos víamos como locais de toda a cidade. Hoje, neguinho é local do Campeche, do Matadeiro, da Brava. Houve uma fragmentação”. Para Fontes, se os conflitos aumentaram, são fruto da explosão do número de surfistas nas águas ilhôas. “Há localismo por aqui como há em qualquer outro lugar do mundo onde tem ondas e surfistas. Infelizmente, isso é inevitável. Mas não existe nem nunca existiu qualquer movimento Fora Haole. Isso é pura ficção”, esclarece o presidente da Fecasurf.
Bita Pereira, 44, surfista há mais de 20 anos e vice-prefeito de Florianópolis, nunca teve problemas com locais nervosos em qualquer praia da Ilha. Credita o fenômeno ao instinto natural que o surfista tem de preservar para si a sua praia mas diz não entender nem tolerar a violência. “Não concordo com o localismo, mas o compreendo”, explica Bita.

O difícil é explicar

A coisa desabou mesmo na imprensa quando algum repórter se interessou pelo assunto e os surfistas locais tentaram explicar o que acontece. Foi aí que a porca torceu o rabo: como esclarecer a esta mídia leiga que as normas a reger o relacionamento entre surfistas são próprias e diferentes daquelas que regulam o restante das atividades humanas? Como dizer que as regras do surf transcendem às do Estado? Como alegar que quem dita as leis na hora de se ir pegar ondas são os próprios surfistas e que quem fiscaliza a sua correta aplicação também são os mesmos? Ninguém entendeu nada e os fatos foram recebidos pelos não surfistas como simples agressão a turistas, como uma ofensa a vocação turística da cidade, como pura xenofobia e como caso de polícia.
É claro que alguns lances mais violentos são realmente casos para os policiais. São episódios que, quando inquiridos a fundo, revelam-se, muitas vezes, pouco conectados com o surf. O esporte, nestes momentos, passa a ser pretexto para as mais diversas rixas pessoais e brigas de gangues, para atos de narcisismo daquele brigão de todas as horas e para que os mais variados recalques, inseguranças e desvios de conduta de alguns – quase sempre os mesmos – sejam desaguados. Tanto é que, de acordo com investigadores do 10º Departamento de Polícia da Lagoa, que tem na sua jurisdição as praias da Joaquina e Mole, faz tempo que não se atende a reclamações envolvendo altercações entre surfistas nas praias de sua alçada. Segundo estes policiais, já houve ocorrências, obviamente, mas não existe, hoje, qualquer sinal de que elas venham crescendo em número.

Locais versus haoles: quem é quem na Ilha de Santa Catarina

A maior dificuldade de quem tenta entender o localismo em Floripa é a definição de haole. Chega a ser engraçado porque é quase impossível caracterizá-lo. Há haoles que, depois de um curto espaço de tempo em uma praia, já se definem locais dela e passam a agir como tal. Ao mesmo tempo, há nativos que, dependendo da sua forma de agir – se pouco relacionado socialmente ou se mantém tretas com outros locais –, passam automaticamente a serem considerados haoles. Pessoas de uma praia podem ser haoles na outra que fica apenas cinco quilômetros distante. Mas na concepção dos surfistas manés, haoles mesmo, sem qualquer dúvida, são aqueles de outros estados que chegam na água falando alto e com fortes sotaques de suas regiões. Estes são os genuínos.
Nos últimos anos o termo tem até saltado do universo do surf e passado a fazer parte do vocabulário de outros setores. Daí que qualquer forasteiro, mesmo aquele que nunca tocou numa prancha de surf, já é considerado haole até por não-surfistas. Por sorte, apesar de haver um certo “orgulho mané” no ar, a xenofobia ainda não está muito difundida pela Ilha.


Localismo versus Turismo: contra-senso

Nada parece mais antagônico do que os termos localismo e turismo. Foi por isso que os mais incomodados com a atenção dada pela mídia à falta de hospitalidade dos surfistas locais em Florianópolis foram aqueles que dependem dos turistas para viver. Um dono de hotel na Joaquina reclamou já ter ouvido muitas queixas de hóspedes surfistas. “Até me chamam para acompanhá-los à praia e interceder junto aos locais”, conta o hoteleiro. Para ele, é óbvio que o localismo não é nada bom para os seus negócios e é, sim, caso de polícia.
Não há qualquer estudo que determine o percentual de surfistas entre todos os turistas que visitam Floripa anualmente e, por isso, é impossível taxar o impacto do humor dos surfistas nativos sobre as atividades turísticas na Ilha. Mas se pode comparar: o Havaí é um dos pontos do planeta que mais atrai turistas. São ilhas que vivem exclusivamente dos visitantes que conseguem atrair. Ao mesmo tempo, aquele estado americano é também o lugar no mundo onde o localismo no surf está mais enraizado. Lá, a coisa é tão tradicional quanto dançar o hula.

Saídas

Já dizia aquele cientista famoso: “pense globalmente, aja localmente”. Quando realizamos a primeira parte da frase, quando refletimos em termos mundiais, concluímos que parece não haver solução para o localismo, uma vez que mesmo nos países mais desenvolvidos, aqueles que contam com as polícias mais modernas e eficazes, as expulsões d’água e a pancadaria continuam correndo soltas. No entanto, a Ilha de Santa Catarina tem quem pense localmente e arrisque palpites. Para Alexandre Veiga, o homem dos famigerados adesivos “SOS Fora Haole”, os forasteiros precisam tentar entender o nativo, o seu jeito de ser, sua forma de agir e pensar, ao invés de tentar impor as suas próprias maneiras. “Nós, nativos, só queremos paz, mas isso não quer dizer que o forasteiro pode vir para cá pensando ser superior”, reitera Veiga. Já o vice-prefeito Bita Pereira esclarece que “os nativos de Florianópolis são naturalmente hospitaleiros e basta que o surfista visitante tenha bom senso e simpatia para que se sinta à vontade em qualquer praia da Ilha”.
“O surf não tem um espaço definido, não há quadras esportivas para ele e tampouco pistas apropriadas. Daí vem a dificuldade em controlá-lo. É, com certeza, um dos esportes mais livres que existe”, poderá Xandi Fontes, da Fecasurf. Para ele, somente a razão, o respeito e a calma podem, se não erradicar, pelo menos diminuir bastante os conflitos. “O surf é um dos esportes mais bonitos e, certamente, o mais democrático de todos. Por isso não combina nem um pouco com violência”, declara.

segunda-feira, outubro 02, 2006

Quase um conto de surf - Um haole perdido em uma ilha do Pacífico.

Verão passado, um email enviado por uma amigo que vive em Pago Pago, na ilha de Tutuila, Samoa Americana, bateu aqui no meu escritório em Honolulu. Dizia que uma violenta tempestade havia destruído as pedras que marcavam o túmulo de Malua. Esse amigo achava que eu deveria saber disso já que, recentemente, eu havia conhecido a história de Malua e de sua vida insólita. A verdade é que eu vinha conduzindo uma pesquisa arqueológica em Tutuila, não muito longe de Pago Pago, quando encontrei sua tumba num cemitério abandonado. Os samoanos tradicionalmente enterram seus entes queridos perto das suas casas ao invés de, como nós, manterem áreas especiais para isso. Então eu sabia que aquelas sepulturas descuidadas que eu examinava guardavam ossos solitários de pessoas de outros lugares. Tratava-se de um cemitério de forasteiros. Sepultados lá havia marinheiros do tempo em que a marinha norte-americana administrava Samoa – entre 1900 e 1951. Estavam também ali capitães de navios civis mortos longe de casa, depois de seus navios terem se destroçado sobre os recifes que cercam a ilha; outros presentes eram um ferreiro de New England, um ex-carteiro de Pago Pago que havia sido veterano da guerra civil americana, um marinheiro que foi assassinado e que fazia parte da tripulação de um navio mercante, uma mulher que morreu em rota para São Francisco, e vários vagabundos e aventureiros dos mares. A maioria das lápides era feita de concreto e algumas contavam até com monumentos de pedra.
Mas escondida em um canto estava uma tumba anônima, bem diferente das demais. Consistia apenas em um retângulo de pedras basálticas amontoadas, em um arranjo distinto, que lembrava a maneira com que os samoanos e outros polinésios deixavam sepultados os seus mortos no final do século XIX e começo do século XX. Eu quis saber quem ocupava este sepulcro singular e, se essa pessoa era mesmo um polinésio – como demonstravam estes arranjos funerários –, porque estava ele enterrado entre os estrangeiros.
Quando entrei no edifício dos Arquivos da Samoa Americana, tinha poucas esperanças de encontrar algo sobre o cemitério de forasteiros, mas como todo pesquisador precisa ter entre suas ferramentas um pouco de sorte, só posso creditar a ela o mapa que encontrei contendo todos aqueles túmulos numerados. Seis décadas antes, alguém não apenas teve a paciência de registrar túmulos e respectivos defuntos, mas também, quando possível, adicionou uma pequena narrativa sobre a vida e morte de cada um.
Voltei para o cemitério com o mapa e nele chequei a posição da sepultura misteriosa. Esta estava marcada com o número 5 e era ocupada por um tal “Malua, das Ilhas Salomão, o último tripulante de um barco que aportou em Tutuila em 1884”.

As Ilhas Salomão estão a aproximadamente 3.000 km a oeste de Tutuila. Como Malua e seus companheiros de embarcação realizaram essa viagem? Será que eles, a bordo de uma daquelas tradicionais embarcações salomoenses, empreenderam uma viagem ¬– por sabe-se lá qual objetivo – até Samoa? Ou seriam eles pescadores que perderam a rota e sobreviveram a algum inconveniente marítimo? O que aconteceu depois que eles chegaram? E o que foi feito de seus companheiros de tripulação? Pelo menos agora eu tinha um nome e uma data, o que, talvez, aumentasse as chances de êxito das minhas investigações.
E como depois descobri, a história de Malua, realmente incrível, foi inclusive registrada pelo jornal local, o falecido “Le Fa’atonu” (Samoano para “faça certo”). Aliás, vários contemporâneos de Malua escreveram sobre sua vida: um comandante da marinha americana, um aventureiro em excursão pelos mares do sul no começo dos anos vinte do século passado, um missionário mormon, e até mesmo o mestre escritor – e intrépido explorador do Pacífico – Robert Louis Stevenson. Suas versões não são completas tampouco consistentes mas fornecem peças para a montagem do quebra-cabeças e é nelas que baseamos este relato.
Politicamente, o arquipélago das Ilhas Salomão é dividido em dois: a parte leste compreende o território da Samoa Americana e a parte oeste constitui a nação independente da Samoa. Por volta de 1880, uma companhia alemã controlava a produção de copra (a polpa de coco seca) na parte oeste e, para isso, transportava trabalhadores para aquelas plantações. Alguns eram independentes, homens contratados temporariamente. Outros eram “blackbirds” – como os nativos do sul eram conhecidos em Samoa – e vinham para as colheitas geralmente à força, após serem seqüestrados em suas ilhas de origem.
Muitos desses trabalhadores, tanto os contratados quanto os “blackbirds” vinham de ilhas da Melanésia e entre esses estava Malua. Não se sabe se porque fora seqüestrado ou por não estar satisfeito com o que ganhava, mas Malua e outros três ou quatro companheiros, secretamente construíram uma jangada e partiram da ilha de Upolu, na Samoa do oeste, cruzando o traiçoeiro canal de 60 quilômetros que a separa de Tutuila. Stevenson, que vivia em Upolu naquele tempo, descreveu o ocorrido em seu livro “A Footnote to History: Eight years of Trouble in Samoa (1892)” da seguinte maneira: “Existem ainda três fugitivos nas florestas da Ilha de Tutuila, para onde escaparam em uma balça, e os samoanos estão alarmados com a presença destes forasteiros de pele escura em sua ilha. Um destes refugiados, pelo que me informaram, foi morto a tiros quanto tentava raptar uma virgem ilhôa. Além disso, estórias de canibalismo correm de casa em casa e os nativos se apavoram quando as ouvem”.
Edwin Taylor Pollock, governador da Samoa Americana por volta de 1920, nos deixou um diferente relato da destino dos fugitivos: “Um afogou-se ou foi devorado por um tubarão quanto tentava aportar, outro morreu ou foi morto depois de tentar abduzir uma garota samoana, um terceiro faleceu por volta de 1910, e o último permanece nas montanhas”.
O que quer que tenha acontecido com os outros foragidos, a verdade é que Malua e outro colega fugiram realmente para as montanhas de Tutuila, o que deu início ao surgimento de uma série de lendas. Alguns meses depois, este camarada de Malua apareceu na Vila de Aua por sua própria vontade ou por ter sido capturado, não se tem certeza, e foi trazido à presença do governador, comandante Benjamin Franklin Tilley. Um relato posterior, aparentemente baseado nos escritos de Tilley, descreve o homem, que não tinha sequer nome, como um “completo selvagem”, na altura de seus 45 anos, e muito temeroso pela própria vida. Usando rudimentos do próprio idioma misturados com alemão e inglês, ele dizia ter pavor dos samoanos mas, assim mesmo, recusava passagem para sua terra natal, as Ilhas Salomão. Falava ele que, devido ao longo tempo que manteve-se afastado de sua gente, estes poderiam não reconhecê-lo e tratá-lo como um estranho, podendo até matá-lo e comê-lo.
O que terminou acontecendo com esse apreensivo homem é desconhecido, mas antes de adormecer na escuridão da história, ele contou a todos na vila que Malua ainda estava vivo e habitava os mais ermos confins das montanhas. Malua tornou-se, então, o “Homem Selvagem” da Samoa. E como todos os mitos que surgem, este também veio acompanhado dos boatos e pavores provocados pelo misterioso – e provavelmente perigoso – homem “que arrasta gente para as montanhas”.

Quando se espalhou a notícia de um estranho homem a viver em algum lugar nas montanhas da Ilha de Tutuila, as reações óbvias: pais, para que os filhos pequenos viessem para casa, amedrontavam-nos a dizer que o homem selvagem os levaria. Malua teria sido culpado por qualquer porco ou galinha que desaparecesse. O Governador Pollock, em seus apontamentos, reportou que histórias de pessoas que viam o homem selvagem “eram geralmente recebidas com risadas”. Mas ele completou, que “também havia terríveis relatos sobre o desaparecimento de um ou dois habitantes que, se assumia, haviam sido raptados e comidos pelo ‘tamauli’”, como o Malua era tratado pelos samoanos (tamauli significa homem preto na língua local).
Porém, na primavera de 1923, os eventos tomaram um rumo inesperado. O samoano Ielu, conhecido por suas habilidades em escalar montanhas, deixou sua jovem esposa e a família em Upolo, mesma ilha de onde Malua havia escapado e também viajou para Pago Pago, em Tutuila, em busca de trabalho e dinheiro. Mas antes de conseguir um emprego, Ielu foi preso e condenado por roubo. Parte de sua pena ele cumpria trabalhando durante o dia na abertura e manutenção das estradas da ilha. Rapidamente Ielu caiu deprimido por seu destino e resolveu se suicidar escalando o topo da montanha mais próxima de onde pularia para a morte. Foi então que, fugindo da estrada onde trabalhava, rapidamente despistou seus perseguidores e se enfiou pelas montanhas adentro.
Quando alcançou um remoto precipício onde imaginava terminar sua vida, Ielu ouviu, na quietude dos arredores, cocos caindo um a um ao chão. O ritmo dos sons sugeriam que alguém estava nos coqueirais, a colher os frutos. Quando Ielu virou-se para averiguar essa tão improvável possibilidade, encontrou-se cara a cara com o desnudo homem negro. Algo, talvez o mais instintivo impulso de “captura do homem selvagem”, fê-lo com que se lançasse em luta com o outro, não menos fugitivo. E então, como era de se esperar, o mais jovem levou a melhor. Ielu subjugou Malua, cobriu sua nudez com um pedaço de tecido rasgado da própria lavalava (a típica saia samoana) e, após uma longa caminhada montanha a baixo, entrou com seu prisioneiro no departamento de justiça local. Provavelmente, esta foi uma visão das mais surpreendentes para a população.

E, a este ponto, a história continua a tomar caminhos não imaginados. Ao invés de ser executado, exposto, ou tratado violentamente pela população, Malua, que a esse tempo já passava dos 60 anos e tinha a cabeça coberta por cabelos brancos, foi muito bem recebido pelos que lhe capturavam. Pentearam-no, deram-lhe roupas, alimentaram-no, provou doces – os quais disse ter adorado – e se sentiu como se fora um membro da família que há muito não se via.
O inusitado de tal recepção se deveu ao fato de que os samoanos já haviam, neste tempo, criado uma sociedade na qual a ninguém era permitida a orfandade, a fome, ou a falta de um teto. O comportamento cortês e a amigável hospitalidade eram quase uma religião. Claro que os samoanos ainda tinham a capacidade de definir quem era local e quem era forasteiro e também compartilhavam com o resto da humanidade um terror mórbido pelo homem selvagem. No entanto, uma vez confrontados com a misteriosa figura das florestas em carne e osso, os polinésios o acolheram como se Malua fora um deles. Qualquer estigma que ele pudesse anteriormente carregar foi rapidamente dissipado pelo envolvente senso de humanitarismo local.
Nas semanas que seguiram à sua chegada, Malua criou laços particularmente fortes com a pessoa que o capturou: Ielu tornou-se seu fraterno salvador. Mesmo com ele de volta à prisão e aos trabalhos nas estradas, Malua não o largava: dormia no chão da cela do “irmão” e o ajudava no trabalho. Eles eram inseparáveis.
Infelizmente, o conto do homem selvagem de Samoa não teve um final feliz. Depois de quase quarenta anos de uma vida isolada, saudável e desnuda nas florestas, Malua sobreviveu apenas três meses antes de cair gravemente doente de civilizada pneumonia. Morreu em 5 de setembro de 1923, no hospital naval de Pago Pago e foi sepultado, em estilo polinésio, no cemitério de forasteiros.

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Extraído do artigo "O selvagem de Samoa ou um Conto do Cemitério de Forasteiros" publicado na Natural History de fevereiro de 2004. Traduzido por Eduardo Faria.