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O texto a seguir, colaboração do fiel leitor Edu Faria, tinha como destino uma revista. Mas, como não foi aprovado, acabou aqui, no Blog do Pierre, espaço aberto para os pouco talentosos.
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Um dos resultados do crescimento populacional em Florianópolis é o surgimento de um certo desconforto entre os surfistas nativos, assustados com a quantidade de gente a disputar ondas nas praias da Ilha. Assim, ao mesmo tempo em que existe uma comunidade no Orkut denominada “quero ir morar em Floripa”, existe outra composta basicamente por nativos da cidade, entitulada “Fora Haole”. Casos de violência já aconteceram e foram pauta da imprensa local e até do Jornal Nacional. Seria o localismo na Ilha de Santa Catarina assim tão assustador?
EM SANTA CATARINA, como em outros cantos do Brasil, as praias são públicas. Esta é a premissa básica que deve reger o comportamento de todos os que frequentam as beiras de mar deste Estado. Depois desta regra fundamental e oficial, existem outras não menos oficiais que também regulam o comportamento dos praieiros.
Para os que preferem embarcar, a Marinha mantém para todo o litoral brasileiro várias normas de circulação de barcos, lanchas, jetskis, canoas e tal. São exigidos registros, documentação, autorizações, enfim, uma burocraciazinha básica. Aqueles que vão pescar também precisam seguir uma série de códigos que controlam desde horários e locais para se jogar linha e anzol, até o direito de deixar redes espalhadas pela costa. Não se pense que qualquer um pode sair mar a fora largando redes. A coisa não é tão simples.
Em algumas das praias mais concorridas de Florianópolis existem placas divulgando regras e horários para a prática de esportes de areia como o frescobol, o futebol e o vôlei. Não que os praticantes as obedeçam – eles gostam mesmo é da muvuca –, mas que elas existem, existem. De acordo com outra norma que a rapaziada não dá muita bola, animais de estimação são proibidos na areia mas, mesmo assim, esse pessoal que não tá nem aí sempre traz seus totós e lulus para tomar um sol e se refrescar. A lei está de olho até na menina que quer apenas um bronzeado: topless, por exemplo, é atentado ao pudor e dá até cadeia.
Com tantas leis e regras institucionalizadas controlando o que fazemos no litoral, é incrível que até hoje não se tenha qualquer norma que organize a prática do surf no Brasil. É impressionante que exista a preocupação com bolinhas de frescobol perdidas mas nenhuma apreensão com a principal atividade náutica praticada neste pais. Não que fossem necessários registros e números para as pranchas, nem arraiz (a carteira de motorista dos navegantes) para todos os surfistas mas certamente algumas regrinhas de conduta, de convivência e de limites seriam bem vindas.
Tanto são necessárias que, na falta dos oficiais, os próprios surfistas vêm, há décadas, criando, implementando e seguindo – ou, em muitos casos, impondo – os seus próprios códigos de conduta para a atividade, códigos estes que, segundo eles, seriam universais, imprescindíveis e todos que se jogam com uma prancha sobre as ondas, sem exceção, têm que obedecer. Um exemplo: em algum momento da história do esporte, alguém disse que aquele que dropa mais dentro da onda tem o direito sobre ela. Outro que se aventurar na frente deste que tem a prioridade estará "rabeando" e, assim, quebrando uma destas regras naturais do surf. Quem surfa tem que conhecer esta lei, mesmo que ela não esteja escrita em nenhum lugar, mesmo que nenhum poder legislativo governamental a tenha decretado.
É em outro princípio deste código de cavalheiros que se fundamentam alguns nativos dos mais diversos surfspots ao redor do mundo quando decidem quem pode e quem não pode surfar as principais ondas de um lugar. O preceito é chamado de localismo e se resume em um ponto: os nativos têm prioridade sobre as ondas. Os haoles (termo havaiano que ajuda a evidenciar a internacionalidade da coisa) só podem, quando podem, pegar as sobras. E a quem infringir este regulamento caberá repreensão que, dependo da poder de reação do transgressor, poderá se transformar em um convite para se retirar da água ou da praia, poderá também se manifestar na forma de carros riscados, pneus furados, agressão generalizada e por aí vai.
Essas coisas independem do nível de desenvolvimento sócio-econômico do país onde acontecem e se equivalem em violência por todas as longitudes e latitudes do globo: no Havaí, faz tempo que os Black Trunk arrepiam na truculência. Na Austrália, recentemente, um surfista foi surrado covardemente por uma turba de locais só por ser brasileiro, e outro patrício, na Califórnia, precisou chamar a polícia para, pelo menos uma vez, poder entrar na água. O mais incrível é que tudo isso acontece à margem das leis do Estado. Trata-se de um poder paralelo, de um outro estado ou, ainda, da ausência dele.
Em Florianópolis a coisa não poderia ser diferente. Destino nas últimas décadas de migrantes oriundos de todo Brasil, principalmente gaúchos e paulistas – dentre eles muitos, mas muitos surfistas – a cidade convive hoje com a intensa especulação imobiliária, com a devastação ambiental e com a, digamos assim, total descaracterização sócio-cultural ou, em outras palavras (essa é a principal queixa dos nativos), o engolimento da cultura e da personalidade nativa (seja lá o que isso signifique) por outras alienígenas migrantes.
E dentro da água, naturalmente, a coisa também virou um inferno. Gritos, xingamentos, pessoas expulsas d’água, fatos que viraram manchetes na mídia local e até na de âmbito nacional. Apontou-se a existência de um movimento organizado intitulado “Fora Haole”, que abrigaria mais de 2 mil manés (como os nativos se intitulam) e que seria o responsável por esses atritos com surfistas visitantes, por estas rusgas com turistas que pegam onda.
A verdade é que o localismo praticado na Ilha de Santa Catarina teria a mesma intensidade – ou de repente é até mais brando – que o praticado em algumas praias do Rio de Janeiro, do litoral norte Paulista ou, mesmo, naquele institucionalizado na praia de Atalaia, em Navegantes, município próximo de Florianópolis, onde o fenômeno já virou tradição. O problema é que estes casos mais exacerbados a despontar na ilha contrastam com a presença de Floripa nas páginas de todos os cadernos de viagens nacionais e até nos do New York Times, destoam da imagem de qualidade de vida e segurança que a cidade divulga proporcionar a seus habitantes e turistas, não batem com a visão idílica do lugar e de seus manés tão hospitaleiros. Mesmo que os conflitos sejam pontuais, mesmo que a coisa não seja assim tão feia, a impressão que a mídia não especializada tem, ao ouvir relatos de um ou dois episódios violentos, é que há algo errado no paraíso.
“Começamos a ver pela cidade um monte de carros com o adesivo ‘SOS PRAIA MOLE’ e notamos que quase todos tinham placas de São Paulo ou do Rio Grande do Sul. Aí, para zoar, fizemos uns 50 adesivos com a inscrição ‘SOS FORA HAOLE’, que até rimava”, lembra Alexandre Veiga, 33, surfista há 28 anos e ex-presidente da Associação de Surf da Joaquina. “Sem querer, lançamos uma idéia que fugiu completamente do controle”, lamenta Veiga. Não que o localismo não existisse antes dos famigerados adesivos. Para Alexandre Fontes, 46, vereador em Florianópolis, presidente da Federação Catarinense de Surf e praticante do esporte desde 1973, “desde que comecei a surfar, existe localismo na Ilha. Mas, como éramos poucos a praticar o esporte por aqui, nos víamos como locais de toda a cidade. Hoje, neguinho é local do Campeche, do Matadeiro, da Brava. Houve uma fragmentação”. Para Fontes, se os conflitos aumentaram, são fruto da explosão do número de surfistas nas águas ilhôas. “Há localismo por aqui como há em qualquer outro lugar do mundo onde tem ondas e surfistas. Infelizmente, isso é inevitável. Mas não existe nem nunca existiu qualquer movimento Fora Haole. Isso é pura ficção”, esclarece o presidente da Fecasurf.
Bita Pereira, 44, surfista há mais de 20 anos e vice-prefeito de Florianópolis, nunca teve problemas com locais nervosos em qualquer praia da Ilha. Credita o fenômeno ao instinto natural que o surfista tem de preservar para si a sua praia mas diz não entender nem tolerar a violência. “Não concordo com o localismo, mas o compreendo”, explica Bita.
O difícil é explicar
A coisa desabou mesmo na imprensa quando algum repórter se interessou pelo assunto e os surfistas locais tentaram explicar o que acontece. Foi aí que a porca torceu o rabo: como esclarecer a esta mídia leiga que as normas a reger o relacionamento entre surfistas são próprias e diferentes daquelas que regulam o restante das atividades humanas? Como dizer que as regras do surf transcendem às do Estado? Como alegar que quem dita as leis na hora de se ir pegar ondas são os próprios surfistas e que quem fiscaliza a sua correta aplicação também são os mesmos? Ninguém entendeu nada e os fatos foram recebidos pelos não surfistas como simples agressão a turistas, como uma ofensa a vocação turística da cidade, como pura xenofobia e como caso de polícia.
É claro que alguns lances mais violentos são realmente casos para os policiais. São episódios que, quando inquiridos a fundo, revelam-se, muitas vezes, pouco conectados com o surf. O esporte, nestes momentos, passa a ser pretexto para as mais diversas rixas pessoais e brigas de gangues, para atos de narcisismo daquele brigão de todas as horas e para que os mais variados recalques, inseguranças e desvios de conduta de alguns – quase sempre os mesmos – sejam desaguados. Tanto é que, de acordo com investigadores do 10º Departamento de Polícia da Lagoa, que tem na sua jurisdição as praias da Joaquina e Mole, faz tempo que não se atende a reclamações envolvendo altercações entre surfistas nas praias de sua alçada. Segundo estes policiais, já houve ocorrências, obviamente, mas não existe, hoje, qualquer sinal de que elas venham crescendo em número.
Locais versus haoles: quem é quem na Ilha de Santa Catarina
A maior dificuldade de quem tenta entender o localismo em Floripa é a definição de haole. Chega a ser engraçado porque é quase impossível caracterizá-lo. Há haoles que, depois de um curto espaço de tempo em uma praia, já se definem locais dela e passam a agir como tal. Ao mesmo tempo, há nativos que, dependendo da sua forma de agir – se pouco relacionado socialmente ou se mantém tretas com outros locais –, passam automaticamente a serem considerados haoles. Pessoas de uma praia podem ser haoles na outra que fica apenas cinco quilômetros distante. Mas na concepção dos surfistas manés, haoles mesmo, sem qualquer dúvida, são aqueles de outros estados que chegam na água falando alto e com fortes sotaques de suas regiões. Estes são os genuínos.
Nos últimos anos o termo tem até saltado do universo do surf e passado a fazer parte do vocabulário de outros setores. Daí que qualquer forasteiro, mesmo aquele que nunca tocou numa prancha de surf, já é considerado haole até por não-surfistas. Por sorte, apesar de haver um certo “orgulho mané” no ar, a xenofobia ainda não está muito difundida pela Ilha.
Localismo versus Turismo: contra-senso
Nada parece mais antagônico do que os termos localismo e turismo. Foi por isso que os mais incomodados com a atenção dada pela mídia à falta de hospitalidade dos surfistas locais em Florianópolis foram aqueles que dependem dos turistas para viver. Um dono de hotel na Joaquina reclamou já ter ouvido muitas queixas de hóspedes surfistas. “Até me chamam para acompanhá-los à praia e interceder junto aos locais”, conta o hoteleiro. Para ele, é óbvio que o localismo não é nada bom para os seus negócios e é, sim, caso de polícia.
Não há qualquer estudo que determine o percentual de surfistas entre todos os turistas que visitam Floripa anualmente e, por isso, é impossível taxar o impacto do humor dos surfistas nativos sobre as atividades turísticas na Ilha. Mas se pode comparar: o Havaí é um dos pontos do planeta que mais atrai turistas. São ilhas que vivem exclusivamente dos visitantes que conseguem atrair. Ao mesmo tempo, aquele estado americano é também o lugar no mundo onde o localismo no surf está mais enraizado. Lá, a coisa é tão tradicional quanto dançar o hula.
Saídas
Já dizia aquele cientista famoso: “pense globalmente, aja localmente”. Quando realizamos a primeira parte da frase, quando refletimos em termos mundiais, concluímos que parece não haver solução para o localismo, uma vez que mesmo nos países mais desenvolvidos, aqueles que contam com as polícias mais modernas e eficazes, as expulsões d’água e a pancadaria continuam correndo soltas. No entanto, a Ilha de Santa Catarina tem quem pense localmente e arrisque palpites. Para Alexandre Veiga, o homem dos famigerados adesivos “SOS Fora Haole”, os forasteiros precisam tentar entender o nativo, o seu jeito de ser, sua forma de agir e pensar, ao invés de tentar impor as suas próprias maneiras. “Nós, nativos, só queremos paz, mas isso não quer dizer que o forasteiro pode vir para cá pensando ser superior”, reitera Veiga. Já o vice-prefeito Bita Pereira esclarece que “os nativos de Florianópolis são naturalmente hospitaleiros e basta que o surfista visitante tenha bom senso e simpatia para que se sinta à vontade em qualquer praia da Ilha”.
“O surf não tem um espaço definido, não há quadras esportivas para ele e tampouco pistas apropriadas. Daí vem a dificuldade em controlá-lo. É, com certeza, um dos esportes mais livres que existe”, poderá Xandi Fontes, da Fecasurf. Para ele, somente a razão, o respeito e a calma podem, se não erradicar, pelo menos diminuir bastante os conflitos. “O surf é um dos esportes mais bonitos e, certamente, o mais democrático de todos. Por isso não combina nem um pouco com violência”, declara.